Mundo da Rádio

  Rádio antigo Capehart International

    Os membros mais antigos do "Fórum da Rádio" porventura recordar-se-ão de um tópico (disponível aqui [formato PDF]) com fotografias dos emissores das rádios locais e nacionais a emitirem do Monte de São Bartolomeu e da Serra da Nogueira (concelho de Bragança). Se o tema do tópico por si só não tinha nada de extraordinário, uma particularidade da Serra da Nogueira despertou bastante interesse pela sua invulgar configuração: no topo da serra, bem perto das torres de emissão de rádio e televisão, surgem na paisagem duas imponentes parábolas iguais, impossíveis de passar despercebidas atendendo às suas dimensões, sendo, naturalmente, motivo de curiosidade não só das populações locais como dos entusiastas das radiocomunicações. Segundo o relato do utilizador "TMG" no artigo mencionado, as infra-estruturas terão sido inauguradas com pompa e circunstância em meados da década de 60 do século XX, durante o Estado Novo, altura em que a explicação oficial era a de que se tratavam de antenas de comunicação com a Europa, pertencentes aos agora extintos serviços radioeléctricos dos CTT. Actualmente, as infra-estruturas pertencem, alegadamente, à Portugal Telecom. De referir que as antenas estão apontadas precisamente na direcção Nordeste, corroborando a tese que se tratam efectivamente de emissões provenientes e/ou destinadas a um qualquer ponto da Europa central.

     Volvidos vários anos do tópico original, numa pesquisa através da Internet onde procurava informação respeitante a outro assunto relativo às radiocomunicações, leio várias referências à Nogueira. Ávido de uma responta concreta a este mistério, consegui, finalmente, "juntar dois mais dois" e, finalmente, reuní dados que atestam que as parábolas situadas na Serra da Nogueira comunicavam de facto com a Europa. Mais concretamente, tratava-se de uma ligação através de "troposcatter" entre este acidente geográfico brigantino e uma segunda estação situada em Artzamendi, uma montanha de 926m de altitude situada no Sudoeste de França, em pleno País Basco, bem próximo da fronteira franco-espanhola e a 490 Km em linha recta de Bragança. Ao que apurei, as estruturas foram construídas pela então Companhia Portuguesa Rádio Marconi, empresa que prestava serviços telegráficos e telefónicos a nível internacional, ligando Portugal continental  às ilhas, às então províncias ultramarinas, à Europa central, ao Brasil e a outras zonas do mundo. Refira-se que a Marconi foi comprada pela Portugal Telecom em 1995, tendo sido alvo de fusão em  2002, desaparecendo  a marca com mais de 75 anos de história.


Ver troposcatter Serra da Nogueira - Artzamendi, Itxassou, França num mapa maior

Todavia, perguntar-se-á o leitor, o que é o "troposcatter"?

    Numa época onde as comunicações via satélite ainda não se encontravam generalizadas e a tecnologia estava longe das inovações dos últimos 20/30 anos, as comunicações a grandes distâncias eram difíceis. Se as comunicações em HF (3.000 - 30000 kHz) permitem efectuar transmissões a milhares de quilómetros, a largura de banda utilizável por cada serviço é demasiadamente reduzida para certos serviços, sobretudo transmissão de dados e comunicações telefónicas. As transmissões em LF, além dos problemas presentes também na HF,  exigem grandes potências de emissão para serem recebidas a centenas ou até a milhares de quilómetros. Restava, então, utilizar frequências muito mais elevadas, que oferecessem uma maior largura de banda mas que simultaneamente possibilitassem a recepção regular a grandes distâncias. Neste contexto, a engenharia electrotécnica desenvolveu as transmissões pelo sistema "troposcatter".

    "Troposcatter"  ou "Tropospheric Scatter" são expressões inglesas equivalentes que poderiam ser traduzidas para português como "dispersão troposférica" e descrevem um método de transmissão utilizado não só em certas frequências UHF como também em frequências mais elevadas (microondas) que permite a recepção a centenas de quilómetros de distância do emissor. Trata-se de um sistema que aproveita o facto de determinados sinais serem sujeitos a uma dispersão à medida que atravessam as camadas superiores da troposfera; para tal, os sinais são irradiados em forma de um feixe altamente direccional apontado à tropopausa, uma região localizada a meio da distância entre o emissor e o receptor. Normalmente, as emissões são realizadas em frequências na ordem dos 2 GHz, por se tratar da faixa mais adequada às condições de propagação.

"troposcatter" vs. linha de vista
Figura 1 - "troposcatter" vs. transmissão em linha de vista

    Dado que a tropopausa é uma camada instável e turbulenta, além de sujeita a perturbações exteriores, apenas uma pequena parte da energia irradiada consegue chegar à antena receptora. Tal situação obriga a que as estações emissora e receptora estejam equipadas com antenas parabólicas de alto ganho ou antenas "billboard", de forma a mitigar as elevadas perdas de sinal na troposfera. Normalmente, são utilizadas antenas parabólicas de grandes dimensões, ligadas a emissores que operam com potências entre 1 kW e 10 kW.

    Mercê das características de emissão, a dispersão troposférica é relativamente segura atendendo a que, como exige um alinhamento preciso das antenas de emissão e recepção, torna muito difícil a interceptação do sinal irradiado (mormente se a transmissão atravessar o oceano), pelo que, entre outras utilizações, foi e continua a ser usada para fins militares. Lendo o artigo "tropospheric scatter" da Wikipédia inglesa, fica-se a saber que as comunicações telefónicas e de dados da British Telecom entre as plataformas petrolíferas do Mar do Norte e as ilhas britânicas eram outrora efectuadas através de quatro caminhos de propagação via troposcatter, utilizando diferentes polarizações; os sinais das quatro transmissões eram recombinados de forma a anular as diferenças de fase. Esta técnica assegurava uma taxa de fiabilidade do serviço de 99,98% - equivalente a cerca de 3 minutos de indisponibilidade por mês. Um valor muito bom para a época...


    Voltando à ligação entre a Serra da Nogueira e Artzamendi, e tendo fé na publicação francesa "Les hommes et la technique témoignages - Histoire des faisceaux hertziens et des télécommunacation par satellite à Thomson CSF" [formato PDF], a Thomson desenvolveu o THC 955, que operava na faixa 830-960 MHz e tinha capacidade para 120 linhas telefónicas, recorrendo a um emissor de 1 kW. O tal THC 955 foi precisamente instalado na ligação Nogueira-Artzamendi; dada a distância elevada entre os dois pontos,  tiveram de instalar um amplificador de 10 kW e  fabricar parábolas de 27 metros de diâmetro que pesam 110 toneladas para resistir a ventos de até 220 Km/h!

    Com a emergência de novos meios de transmissão, nomeadamente com a vulgarização da utilização de satélites de telecomunicações, redes de fibra óptica (e outras tecnologias) que não só proporciou uma melhor qualidade de comunicação como trouxe o advento de novos meios como a Internet (sem a qual esta página jamais teria sido escrita!), o "troposcatter" perdeu grande parte do fulgor, excepto para algumas aplicações específicas. Neste contexto, a ligação Nogueira-Artzamendi foi desactivada; segundo o sítio Internet "Zone Interdite", as infra-estruturas na montanha francesa foram reconvertidas num radar. A mesma fonte indica que o "link" terá sido também utilizada para comunicações militares. Contudo, ao que parece, a estação da Serra da Nogueira ainda estará em funcionamento e terá sido reconvertida num retransmissor de comunicações "PAF"(?).

    Saliente-se que o "troposcatter" não é apenas empregue em transmissões profissionais, sendo também conhecido e aproveitado por radioamadores que chegam a recorrer a antenas mais elementares e a frequências VHF e UHF para estabelecer contactos graças à dispersão dos sinais na troposfera. A quem se interesse por estas questões técnicas, sugiro a leitura dos artigos (em inglês) "Everyday VHF, UHF, and SHF propagation / 700 km DX anytime using troposcatter" e "Troposcatter at 50 MHz". Escritos por dois radioamadores, os artigos apresentam algumas informações interessantes a respeito dos problemas deste tipo de comunicação, incluindo as relações entre a potência de emissão e a perda de sinal expectável, mas também entre o ângulo de dispersão e a perda de sinal, entre outras. Conclui-se, portanto, que as características da propagação são muito mais complexas do que se poderia pensar à partida.

    Para finalizar, creio, (entrando no campo da especulação) que a escolha da Serra da Nogueira não terá sido inocente: será muito provavelmente, o acidente geográfico mais próximo (em linha recta) do território francês o que, aliado à opção por Artzamendi (também a montanha gaulesa mais próxima do nosso país), permitia encurtar a distância entre as estações (como já referi, pouco menos de 500 km). O factor distância entre antenas terá sido valorizado pelas entidades competentes, uma vez que, como já referi, neste tipo de tecnologia existe uma grande perda de sinal.

Visitas