Numa altura em que a série da Netflix (e que será transmitida também pela RTP) “
Glória” tem dado que falar, importa contextualizar a importância do centro emissor de
Onda Curta
da RARET em Glória do Ribatejo (concelho de Salvaterra de Magos).
Iremos falar de aspectos históricos e técnicos, abstraindo outros
aspectos (espionagem, guerra colonial etc.) retratados na série.
Na década de 50 do século XX, o mundo estava
dividido entre dois blocos políticos: o bloco ocidental, capitalista,
defendido pelos Estados Unidos e alguns países europeus,, e o bloco
oriental, comunista, apoiado pela União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS). Era uma Guerra Fria que se fazia através de
palavras. E como é que as palavras podiam atravessar fronteiras e
percorrer milhares de quilómetros? Através da rádio. É neste contexto
que os Estados Unidos criaram a
Rádio Europa Livre (no original em inglês,
Radio Free Europe),
uma estação internacional de propaganda anti-comunista produzida em
Munique, na Alemanha e destinada a ultrapassar a cortina de ferro e a
fazer-se ouvir nos países de Leste. Na altura, a única tecnologia
disponível para transmitir através das ondas de rádio a milhares de
quilómetros era através da Onda Curta. E os americanos perceberam que
fazia todo o sentido emitir de Portugal em vez da Alemanha.
Perguntará o leitor menos conhecedor das questões
técnicas inerentes às emissões de rádio: mas não seria mais fácil
emitir directamente da Alemanha para os países do outro lado da cortina
de ferro? Seria, mas teria uma eficácia reduzida: devido à distância
relativamente reduzida de Munique aos países visados, as ondas passavam
literalmente por cima do território a cobrir de sinal e a rádio não se
ouvia bem onde se devia fazer ouvir. A geografia favorável aliada às
boas relações diplomáticas entre o regime ditatorial implementado em
Portugal e os Estados Unidos levaram o então presidente do conselho,
Oliveira Salazar, a permitir a instalação de um centro emissor da Rádio
Europa Livre, na condição de se tratar de um mero retransmissor dos
programas emitidos a partir de Munique, não sendo permitida a
realização de programas em Portugal. Daí a designação RARET (Rádio
Retransmissão).
Devido às características da propagação das ondas
nas faixas de Onda Curta, Portugal situava-se numa localização
favorável às emissões da Rádio Europa Livre para o Leste europeu.
Explicando grosso modo, as ondas curtas que saíam de Glória do Ribatejo
atingiam a
ionosfera,
uma região de camadas da ionosfera que reflecte ondas de rádio, e eram
reflectidas na direcção dos países de Leste. Fazendo uma analogia,
seria como se cada antena de emissão fosse uma lanterna construída de
forma a que os raios de luz viajassem até ao céu, onde seriam
reflectidos de volta para a Terra por um espelho, iluminando uma área
geográfica distante.
À época, nas décadas de 50 e 60, não havia ainda
comunicações via satélite - e muito menos Internet. A solução para que
os programas produzidos em Munique chegassem a Portugal era
transmiti-los em Onda Curta. Assim, a RARET dispunha de um centro de
recepção na Maxoqueira, no concelho de Benavente, onde as emissões
provenientes da Alemanha eram sintonizadas e gravadas em bobine para
posterior retransmissão a partir de Glória do Ribatejo. Spoiler: quem
viu o primeiro episódio da série, sabe que uma certa bobine não chegou
ao destino...
Como os técnicos portugueses não falavam russo ou
qualquer outra língua da Europa de Leste, havia tradutores na
Maxoqueira para verificar se o sinal recebido era o correcto e não um
qualquer sinal da Rússia destinado a interferir de forma deliberada a
Rádio Europa Livre. Não raras vezes, os técnicos da Maxoqueira tinham
de pedir a Munique para transmitir noutra frequência devido à
interferência dos russos. A RARET tinha os escritórios principais em
Lisboa, onde também havia tradutores para editarem os programas vindos
da Alemanha antes de serem enviados para Glória do Ribatejo. Era,
aliás, possível, transmitir o áudio entre Lisboa e Glória por via
hertziana.
Voltando à Maxoqueira, o centro de recepção estava
equipado com antenas apontadas à Alemanha e receptores especiais (os
primeiros foram os Hammarlund SP-600, aparelhos profissionais
caríssimos na época), que sintonizavam, em
Banda Lateral Única,
as emissões germânicas em várias línguas, sendo um programa transmitido
na Banda Lateral Superior e outro na Banda Lateral Inferior. Por se
tratarem de emissões em bandas laterais independentes, não eram bem
captados num vulgar rádio de trazer por casa, com Onda Curta e Banda
Lateral Única; era necessário recorrer a receptores com filtros de
banda lateral de qualidade superior.
No complexo de Glória do Ribatejo, havia várias
antenas rômbicas de emissão orientadas na direcção do Leste europeu e,
no edifício, os emissores propriamente ditos (além de outros
equipamentos).
Por falar em antenas, note-se que, quer as antenas
na Glória do Ribatejo, quer as da Maxoqueira, foram desmanteladas, pelo
que os cenários exteriores (e alguns interiores) supostamente da RARET
que aparecem na série são, na verdade, do (infelizmente desactivado
desde meados do ano de 2011) Centro Emissor de Onda Curta (CEOC) da
RTP, próximo de Canha e de Pegões, no concelho do Montijo. Para quem
tentar fazer turismo radiofónico pelo Ribatejo, convém atentar ao facto
de a Rádio Renascença ter uma antena (desactivada) de Onda Média em
Muge, que não deve ser confundida com uma qualquer antena da RARET.
Também em Castanheira do Ribatejo existe uma antena de Onda Média,
activa, que emite a Antena 1 (666 kHz).
Importa acrescentar que, ainda que o objectivo
inicial fosse a reconversão política do Bloco de Leste em poucos anos,
a URSS só começou a desmoronar-se no final da década de 80 e início dos
anos 90. A RARET durou até ao ano de 1996, pelo que as infra-estruturas
em Glória e na Maxoqueira estiveram operacionais por um pouco mais de
quatro décadas. Relativamente às instalações da Maxoqueira, vale a pena
referir que, durante alguns anos, quando já não se justificava a sua
manutenção como mero centro de recepção, mercê da evolução tecnológica,
funcionou como centro emissor, pelo que as emissões da Rádio Europa
Livre chegaram a ser transmitidas de Glória e da Maxoqueira.
Muito mais haveria a dizer, todavia prefiro dar voz a quem trabalhou na RARET :
recomendo vivamente a leitura do artigo
"RARET - Rádio Europa Livre",
da autoria de Mário Portugal Bettencourt Faria, que conta muitas
histórias deveras interessantes a respeito de como as coisas
funcionavam do ponto de vista técnico. Também vale muito a pena dar uma vista de olhos pela
colecção de fotos da RARET, da autoria de Mário Novais, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Por último, uma curiosidade em jeito de spoiler da
série: quem já viu todos os capítulos sabe que um certo médico gravava
as conversas com os pacientes em cassete. E o engenheiro João Vidal
utilizou um dos primeiros modelos de gravador de cassete que surgiram
no mercado - e que ainda não utilizava as teclas "estilo piano" com "
Record", "
Play", "
Rewind", "
Fast Forward", "
Stop/Eject" e, por vezes "
Pause",
corriqueiras nas décadas seguintes. De salientar que a cassete compacta
foi apresentada pela Philips em 1963, apenas 5 anos antes do espaço
temporal da série, pelo que ainda era uma tecnologia recente
(nomeadamente em Portugal).
CC) Luís Carvalho -
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