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> Porque é que não se
implementam redes nacionais de emissores FM em SFN (Single Frequency Network
- rede de frequência única)?
Porque é que não se
implementam redes nacionais de emissores FM em SFN (Single Frequency Network
- rede de frequência única)?
Por diversas vezes, tenho visto pessoas a defenderem que as rádios
nacionais portuguesas a transmitir em Frequência Modulada (FM) deviam
modificar as respectivas redes de emissores por forma a operarem numa
única frequência, tal como é habitual nos sistemas de rádio digitais
(DAB, DAB+, DRM, DMB, etc.). Não obstante ser, em teoria, a solução
ideal para libertar espectro, a implementação de tal sistema
afigurar-se-ia muito complexa e provocadora de grandes desafios
técnicos. Para melhor elucidar o leitor deste artigo, imaginemos que a
Antena 1 passava a transmitir para todo o país nos 88,0 MHz, a Antena 2
nos 88,5 MHz, a Antena 3 nos 89,0 MHz, a Rádio Renascença nos 89,5 MHz,
a RFM nos 90,0 MHz e a Rádio Comercial nos 90,5 MHz.
Problema n.º 1: A velocidade das
ondas electromagnéticas é muito elevada mas não infinita
Sendo
verdade que frequentemente
consideramos, por convenivência, a aproximação da velocidade de
propagação das ondas radioeléctricas ao infinito (admitindo que a
propagação é praticamente instantânea), verifica-se, na realidade, que
essa velocidade é equivalente à velocidade da luz (aproximadamentre
300.000 Km/s). Por conseguinte, na prática, ainda que seja humanamente
impossível verificar experimentalmente, o tempo que o sinal demora a
viajar entre a antena emissora e o nosso receptor depende da distância
a que nos encontramos do emissor. Consideremos o seguinte exemplo,
admitindo que os emissores estavam perfeitamente sincronizados: um
visitante do sítio "Mundo da Rádio" estava a viajar tranquilamente de
Setúbal para Lisboa no seu carro a ouvir a RR nos 89,5 MHz.
Ligava
ao auto-rádio no centro da cidade sadina e sintonizava os 89,5 MHz, com
um sinal bastante forte proveniente do emissor da Arrábida (actuais
105,8 MHz). A antena do carro estava, nesse mesmo instante, a captar o
sinal irradiado pelas antenas da RR no topo da Serra da Arrábida, mas
também um segundo sinal (que chegava atrasado) proveniente do emissor
de Monsanto (Lisboa - actuais 103,4 MHz) que, se fosse suficientemente
forte, interferiria no primeiro. Porquê? Voltando ao início do
parágrafo, a distância entre a Arrábida e o centro de Setúbal é
inferior à distância entre o alto do Monsanto e a cidade sadina,
fazendo com que a emissão de Lisboa tivesse de percorrer uma distância
maior até chegar ao receptor do ouvinte. Tendo a mesma velocidade de
propagação, as ondas provenientes da Arrábida teriam de percorrer uma
distância menor para chegar à antena do veículo. O resultado dessa
diferença de
fase
[grandeza física que mede a diferença de sinais em fenómenos
ondulatórios tais como as ondas electromagnéticas] seria uma
mistura de sinais no receptor que prejudicava seriamente a qualidade de
recepção.
Circulando pela A2, o ouvinte captaria, em teoria, uma RR interferida
não só pelos
emissor da Arrábida e do Monsanto, mas também pelo emissor de
Montejunto. Se dois emissores já davam problemas, imagine-se a situação
com três. Pior: num ponto alto de Lisboa, a antena do carro captava não
só estes três emissores como ainda o de Grândola e o da Banática, por
exemplo. O rádio estava a receber não um, não dois, não três, não
quatro mas cinco(!) emissões do mesmo operador e na mesma frequência a
interferirem-se. Na prática, o chamado efeito de captura, inerente
à modulação de frequência, anula, dentro de certos limites, os sinais
mais fracos, minimizando as interferências. Todavia, tal efeito só é
válido quando a diferença na intensidade de dois sinais ultrapassa os
45 dB; corolário: um dos sinais terá de ser bastante fraco para que não
interfira no outro. Primeira conclusão preliminar: as
redes de emissores, tais como estão actualmente, teriam, no mínimo, de
ser repensadas de forma a evitar estes problemas.
Problema n.º 2: As transmissões
analógicas em FM não dispõem de sistemas de correcção de erros como o
DAB, DAB+, DRM, etc.
Ao contrário do que sucede com os sistemas de rádio digital, as
transmissões analógicas não podem ser apetrechadas de sistemas de
correcção de erros que permitam debelar as diferenças entre os sinais
de dois ou mais emissores, porquanto os sinais analógicos, ao
contrário do que sucede com os digitais, interferem-se destrutivamente
entre si em vez de se complementarem. Por conseguinte, como
referi, ao receber
duas emissões provenientes de diferentes emissores e na mesma
frequência, o nosso receptor não tem capacidade para "separar"
as duas fases, nem tão-pouco para considerar que um sinal ligeiramente
atrasado
(admitindo que os dois emissores estão a distâncias diferentes do nosso
local) é equivalente ao sinal do primeiro emissor, dado que o aparelho
limita-se a filtrar e a amplificar o sinal independentemente das
condições de recepção. Em termos práticos, iríamos ouvir uma emissão
altamente interferida, similar ao que acontece com a propagação
multipercurso (
multipath).
Em
suma: obteríamos um som distorcido e com ruído, frustando as
expectativas de quem se preocupa minimamente com a qualidade de
recepção das rádios. Não esquecer que as tecnologias digitais dispõem
de um sistema de compensação
que consiste num determinado nível de tolerância no processamento de
sinais que permite ao receptor considerar dois símbolos digitais (
bits) recebidos
dentro de um pequeno intervalo de tempo (
intervalo de guarda)
como sendo iguais. O sistema funciona da seguinte forma:
- Os
emissores digitais (DAB,DAB+, DRM, etc.) encontram-se perfeitamente
sincronizados. Isto significa que o mesmo símbolo "sai" de qualquer dos
emissores precisamente no mesmo instante;
- Um receptor situado
na área de cobertura de dois ou mais emissores digitais que estejam
situados a distância diferente uns dos outros vai receber dois símbolos
diferentes em momentos diferentes (pelas razões já referidas).
- O
receptor escolhe um dos sinais como referência e vai considerar que
dois símbolos iguais recebidos dentro do intervalo de guarda (na ordem
dos microssegundos) são o mesmo símbolo e portanto complementam-se
mutuamente, reforçando o sinal.
- Se dois símbolos iguais são
recebidos fora do intervalo de guarda, então o receptor interpreta-os
como sinais diferentes, fazendo com que os símbolos deixem de "encaixar" (por
assim dizer) no puzzle
constituído pelos pacotes de dados enviados pelos emissores.
Ao
contrário da situação anterior, os sinais, em vez de se reforçarem,
prejudicam-se, podendo inviabilizar por completo a recepção.
Desta forma,
dentro de
certos limites,
a recepção de sinais digitais não é efectada pela presença de mais do
que um emissor a emitir os mesmos serviços na mesma frequência. E
sublinho a expressão "dentro de certos limites" dado que, como
é
sabido, a propagação das ondas hertzianas não é linear e depende de
diversos factores que podem prejudicar a correcta descodificação do
sinal. Uma situação que frequentemente inviabiliza a recepção de sinais
digitais nas faixas de VHF e UHF é a condução troposférica, quando os
sinais de emissores mais distantes interferem nos emissores mais
próximos do nosso local. Relativamente a esta face do problema, e
apesar de se tratar de um artigo que aborda as dificuldades de recepção
da TDT em Portugal, sugiro a leitura atenta da página Internet "
Os
motivos que levam a imagem da TDT a falhar em Portugal",
da autoria do Engenheiro de Telecomunicações Eliseu Macedo. Como
referi, apesar do texto se centrar na problemática das dificuldades da
recepção da Televisão Digital Terrestre, a esmagadora maioria das
informações reveladas aplicam-se na íntegra à rádio digital.
Rapidamente se conclui que, apesar de eficiente, uma rede SFN exige uma
concepção rigorosa e complexa da rede de emissores por forma a
minimizar as interferências destrutivas. E mesmo assim quando a
atmosfera prega "partidas", não há milagres.
Extrapolando para o FM, quando a propagação troposférica o permitisse,
alguns sinais longínquos interfeririam nas emissões mais próximas,
agudizando as perturbações na recepção. Um problema que pode ser
minimizado nos sinais digitais, mas que não teria uma solução robusta
nos sinais analógicos.
Problema
n.º 3: A orografia não é "perfeita" (leia-se, 100 % plana) e
a
propagação das ondas hertzianas é prejudicada por fenómenos como a
reflexão das ondas, que não são controláveis pelos técnicos de
radiodifusão:
Portugal, ainda que seja um país pequeno, tem uma orografia
bastante acidentada. Onde, por força da natureza, surgiram estruturas
sólidas e de dimensões consideráveis, tais como as montanhas que, pelas
suas características físicas, reflectem as ondas radioeléctricas. Como
se não bastasse, com o crescimento das cidades do nosso
país, construíram-se grandes obras arquitectónicas que podem também
constituir reflectores passivos dos sinais radioeléctricos.
Tais situações criam locais onde a recepção de sinais rádio é
fortemente prejudicada pela captação da onda directa (linha de vista),
em simultâneo com uma emissão ligeiramente atrasada resultante da
reflexão da mesma sobre uma estrutura, que por sua vez a reencaminha na
direcção do nosso local. Para complicar ainda mais a recepção, pode
perfeitamente ocorrer que a mesma onda tenha sido reflectida mais do
que uma vez (pelo mesmo obstáculo ou por outro), criando mais
diferenças de fase entre as emissões captadas. Na óptica do ouvinte, as
reflexões manifestam-se sob a forma de distorção no áudio (sobretudo
nas altas frequências da gama sonora, especialmente notada
pelo agravamento da sibilância nos "s"), tornando
desconfortável a audição. Sendo certo que numa instalação fixa (antena
instalada no telhado de uma casa, por exemplo) é possível tentar
mitigar tais efeitos por meio da montagem de uma antena direccional
apontada na direcção do emissor, do obstáculo ou de outra direcção que
ofereça a melhor relação sinal/ruído, tal possibilidade é inexequível
num veículo ou num rádio portátil, por exemplo, que recorrem a antenas
omnidireccionais para receber o sinal. Logicamente, seria impraticável
a instalação de uma antena Yagi num carro, porquanto se perderia o
sinal cada vez que o veículo descrevia uma curva - uma situação que, no
mínimo, seria exasperante para o ouvinte e ridículo para qualquer
técnico de rádio... Assim, resta ao ouvinte de rádio que gosta de
acompanhar a emissão no seu bólide esperar a sorte de se encontrar num
local onde o sinal de outro emissor da mesma estação (noutra
frequência) seja suficientemente forte para que o rádio comute (através
da funcionalidade RDS) para esta nova frequência. Caso contrário, terá
de aguentar a situação até encontrar um local isento de problemas.
Se numa rede de emissores convencional (cada um a operar numa
frequência diferente), estes contrangimentos à audição cristalina das
rádios são frequentemente inevitáveis, numa rede
FM em modo SFN tais perturbações seriam muito mais graves, atendendo a
que se somavam aos problemas anteriormente descritos. Recorde-se que os
sistemas digitais são praticamente imunes aos fenómenos de reflexão
mercê da correcção de erros.
As redes SFN em outros países:
Curiosamente ou não, não
conheço nenhum país que adoptou em larga escala redes SFN em FM excepto
em situações específicas, como nas rádios de trânsito que
cobrem as auto-estradas da França ou da Itália, por exemplo.
Nestes casos, trata-se de uma aplicação com reduzido alcance geográfico
e que permitem aos condutores sintonizarem, por exemplo, os 107,7 MHz
em muitas auto-estradas gaulesas e escutar uma emissão que oferece
informações de trânsito e entretenimento precisamente a quem circula
nessas vias. Por outras palavras, como seria expectável, o sinal fora
da auto-estrada será fraco a nulo. Poder-se-ia dizer, com abuso de
linguagem, que se tratam de "microcoberturas" a larga escala. Algo que
não se coaduna com emissores de grandes potências, uma orografia muito
variável e, insisto, uma propagação que é prejudicada por factores
externos não controláveis pelos operadores de rádio.
Outros exemplos de redes SFN são apresentadas neste
documento
[escrito em inglês], encontrado na Internet. Apesar da imparcialidade
duvidosa, o artigo não se limita a apresentar as vantagens das redes
SFN, sugerindo também soluções para alguns dos problemas verificados no
terreno. Mais sério e credível, um
estudo
independente [documento também na língua inglesa] da Audio Engineering
Society, baseando-se na realidade holandesa
(*) e tentando extrapolar para
a Dinamarca conclui que, de forma a evitar interferências entre os
emissores e ruídos na audição, será aconselhável não ter apenas uma
rede SFN mas duas ou mais redes SFN para cada estação de rádio, que
poderia repetir frequências a cerca de 26 Km uns dos outros. Tentando
traduzir para a realidade portuguesa, seria como se a Antena 1 emitisse
do alto do Monsanto nos 88,0 MHz, mas emitisse de Montejunto e de
Grândola nos 88,2 MHz, repetindo os 88,0 MHz na Fóia e na Lousã, etc.
Naturalmente que este último cenário se trata de uma mera conjectura,
carecendo de um estudo técnico que avaliasse tal possibilidade.
(*)
- Note-se que a Holanda tem cerca de metade da área de Portugal
continental e que tanto este país como a Dinamarca, ao contrário do
nosso país, apresentam uma orografia bastante plana.
Conclusão:
A instalação
de uma rede SFN exigiria uma reestruturação completa do parque de
emissores das rádios nacionais. Toda a rede de cada rádio nacional
teria de ser reequacionada por forma a evitar que dois emissores
servissem a mesma área geográfica. Isto implicaria, do ponto de vista
técnico, que alguns emissores poderiam ter de ser deslocalizados e
eventualmente seria necessária a instalação de novos noutros
pontos da geografia do nosso país. Muitos emissores teriam de ser
altamente direccionais por forma a evitar "colisões" com os restantes
e,
mesmo assim, os operadores de radiodifusão não poderiam garantir que
não persistiam problemas. Para não falar nos elevados custos
financeiros que as rádios, públicas e privadas teriam de assumir para
efectuar tais ajustamentos.
Sem
pretender apresentar uma resposta peremptória, espero ter conseguido
com este artigo explicitar os principais desafios técnicos e as
limitações tecnológicas que os operadores de radiodifusão teriam de
enfrentar para construir uma rede SFN. A avaliar pelo artigo da AES,
baseado em dois países com uma orografia muito mais plana que a de
Portugal, a melhor solução seria, provavelmente, criar duas ou três
redes SFN para cada rádio nacional, alternando de frequências entre os
emissores contíguos e repetindo a mesma frequência num emissor mais
longínquo. Inobstante, como tenho insistido, entre
a teoria e a
prática há uma grande diferença, porquanto a propagação do sinal é
influenciada por tantos factores que é impossível oferecer garantias
sem proceder a testes no terreno, pelo que o projecto de reestruturação
do parque de emissores só poderia ver a luz do dia após a avaliação da
situação num contexto real de uma rede a operar a título experimental
numa pequena área geográfica do nosso país.
Este artigo encontra-se em permanente revisão. Apesar
dos meus esforços para tentar melhorá-lo tanto quanto possível, é
provável que o mesmo contenha erros, mormente do foro ortográfico,
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prestada na melhoria do artigo, prometo corrigir as situações logo que
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